Paula, muito oportuna sua pergunta. Fomos buscar numa pessoa experiente em vida religiosa, a resposta à sua questão. Trata-se do Pe. Alfredo Gonçalves, sc. Ele fala de crise ou encruzilhada. Veja
Permitam-se insistir no binômio - Vida religiosa: Crise ou encruzilhada - para avançar a ideia de que a Vida Religiosa (VR) não está em crise, mas numa encruzilhada. O mesmo se poderia dizer, por exemplo, da Teologia da Libertação (TdL) e da “opção preferencial pelos pobres”, das CEBs como Igreja de Base, das Pastorais e Movimentos Sociais... Enfim de todas as forças que, de uma forma o de outra forma, “mexem” com as questões sociopolíticas e apontam um horizonte de novas alternativas. Mas neste espaço vamos nos restringir à VR, com ligeiras alusões a outros campos de atuação pastoral.
1. Crise
Neste contexto, entendo por crise um período de abatimento e escuridão. Sinônimos disso podem ser, entre outras, as noções de perplexidade, desânimo, desencanto e apatia, tendência para a inércia paralizante. Em alguns casos mais agudos, o desespero pode bater à porta e prostrar definitivamente qualquer tipo de iniciativa. Toda crise – seja ela de ordem pessoal ou familiar, quanto comunitária ou institucional – costuma levar-nos ao “berço ou ao colo da mãe”. Por mais crescidos e amadurecidos que sejamos, jamais nos esquecemos dos braços protetores da infância. É o momento em que o pranto inunda o coração, a desilusão entorpece os membros e as lágrimas obscurecem qualquer tipo de reação. A crise, em seu primeiro impacto, nos deixa cegos e surdos a todo apelo vindo de fora.
Três testemunhos bíblicos podem ilustrar essa passagem dolorosa pelo reino das trevas. Comecemos com o profeta Elias. Após caminhar longamente pelo deserto, bate-lhe o cansaço e a crise. As exigências e desafios da missão o prostram, levando-o a um sono que mais parece o repouso da morte: “Sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte, dizendo: ‘Chega, Javé! Tira a minha vida, porque eu não sou melhor que os meus pais’. Deitou-se debaixo da árvore e dormiu (1Rs 19, 4-5).
Passemos ao profeta Jonas. Trata-se de um especialista em driblar a missão a que é enviado em Nínive: converter a cidade dos pagãos ninivitas, inimigos número um de Israel. Cidade que é a verdadeira morada do pecado. Nacionalista doentio e determinado, Jonas foge do rosto de Deus para se esquivar da cidade maldita. A fuga, tanto quanto a mentira, depois de iniciada terá que ser mantida. A tempestade em alto mar, reflexo de uma mente perturbada e de um coração angustiado, leva o profeta a lançar-se nas águas profundas. Não tendo mais para onde escapar, foge de si mesmo, sendo engolido por um peixe . Símbolo clássico do retorno consciente ou inconsciente ao ventre materno. A crise o leva a anular-se completamente, a ponto de desejar nem sequer ter nascido (Jn 1 – 2,2).
Por fim, o profeta Jeremias. De todos, é o mais explícito na manifestação dramática da crise que o toma por completo: “Maldito seja o dia em que nasci. Que jamais seja bendito o dia em que minha mãe me deu à luz! Maldito o homem que levou a notícia a meu pai, dizendo: ‘nasceu um filho homem para você!’, enchendo-o de alegria. Que essa pessoa sofra igual às cidades que Javé destruiu sem compaixão; ouça gritos pela manhã e rumores de guerra ao meio-dia. Por que não me fez morrer no ventre materno? Minha mãe teria sido a minha sepultura, e seu ventre estaria grávido para sempre! Por que saí do ventre materno? Só para ver tormentos e dores, e terminar meus dias na vergonha?” (Jr 20,14-18).
A lista poderia prolongar-se com outras personagens, tais como Abraão e Jacob, Moisés e Isaías, Maria e Isabel, Pedro e Paulo e até o próprio Jesus em Nazaré e no Getsêmani. É o momento da queda, da dúvida, das perguntas que brotam do mais íntimo da experiência humana. Perguntas momentaneamente sem resposta, sem remédio e sem solução. Inquietudes que emergem na noite escura, das entranhas mais recônditas, dos cantos selvagens e desconhecidos da alma. Poderíamos nos remeter, ainda, às experiências místicas de São João da Cruz ou de Santa Tereza D’Ávila, entre tantas outras. Numa palavra, trata-se do lado negativo da crise.
2. Encruzilhada
A crise, porém, qualquer que seja, é notoriamente ambígua. A ambiguidade é um dos ingredientes constitutivos de toda prostração. Diz o ditado que, a exemplo do vaso, é na queda que o ser humano revela sua resistência. Encruzilhada aqui é o momento de enxugar as lágrimas, aliviar o peito e erguer a cabeça. Como nos lembra a canção popular, “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Hora de partir para outra! Nesta perspectiva, a encruzilhada pressupõe um duplo contexto: bifurcação de caminhos, por parte da realidade objetiva; escolha e novas opções, por parte dos protagonistas. Passada a cegueira e a surdez do impacto mais crítico, novos horizontes se abrem. Ao lado negativo da crise, sobrepõe-se seu lado positivo.
De fato, se é verdade que a crise leva ao berço, ao colo da mãe ou até ao anular-se no seu ventre, a encruzilhada aponta para a fronteira. No primeiro instante, o medo, o fracasso e a impotência procuram um refúgio oculto de tudo e de todos, paralisam a ação ou reação. Depois, com os olhos desanuviados, os membros retomam seu vigor e o caminho recomeça. A encruzilhada é o trampolim para transpor limites, buscar a superação de cada obstáculo. Neste sentido, a crise, embora possa deixar os fracos irremediavelmente no berço, costuma levar os fortes a novas fronteiras. È terreno fecundo, deserto fértil, escuridão pontilhada de estrelas. Um parto e um desafio ao crescimento. Convém não esquecer, contudo, que todo nascimento e crescimento ocorrem em meio à dor.
Voltemos aos três exemplos bíblicos. No caso de Elias, diz o texto que, em meio ao sono, “um anjo o tocou e lhe disse: ‘levanta-te e come’. O profeta abriu os olhos e viu bem perto da cabeça um pão assado sobre pedras quentes e uma jarra de água. Comeu, bebeu e deitou-se outra vez. Mas o anjo de Javé o tocou de novo e lhe disse: ‘levanta-te e come, pois o caminho é superior às tuas forças’. Elias levantou, comeu, bebeu, e, sustentado pela comida, caminhou quarenta dias e quarenta noites até o Horeb, a montanha de Deus” (1Rs 19, 5-8). O profeta passa da crise à encruzilhada. Mas o faz não pelas próprias forças. O anjo de Deus o ajuda a reerguer-se e a pôr-se em marcha. Vale aqui a pergunta: em nossas crises pessoais ou coletivas, quantas vezes não contamos com o toque de um ano de Deus? Um amigo ou amiga, um formador ou formadora, uma situação flagrante de injustiça... Enfim, algo ou alguém que nos desperta da letargia, nos sacode, nos nutre com uma palavra de ânimo e nos mostra o caminho. Uma luz que brilha em meio à escuridão!
Em Jonas não se fala de anjo, mas de uma oração profunda, ao mesmo tempo atormentada e esperançosa: “Na minha angústia invoquei a Javé, e ele me atendeu. Do fundo do abismo pedi tua ajuda, e ouviste a minha voz. Jogaste-me nas profundezas, no coração do mar, e a torrente me envolveu. Passaram sobre mim as tuas ondas e vagas. Então pensei: ‘eu fui expulso para longe dos teus olhos; nunca mais poderei admirar a beleza do teu santo Templo’. Eu estava cercado de água até o pescoço, o abismo me rodeava, um lodo se agarrava à minha cabeça. Desci até as raízes das montanhas, a terra se fechava sobre mim para sempre. Mas tu retiraste da fossa a minha vida, Javé, meu Deus” (Jn 2, 3-7). Desse reencontro com Deus e consigo mesmo, resulta um renascimento: “Então Javé mandou que o peixe vomitasse Jonas em terra firme” (jn 2, 11). Do berço e do desespero, o profeta avança para a encruzilhada ou a fronteira, justamente a cidade de onde havia fugido, Nínive.
Jeremias, por sua vez, tem uma trajetória mais complexa. Carrega uma experiência interior tão marcante que o resgate de seu ardor missionário como que precede a própria crise. “Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte do que eu e venceste” (Jr 20, 7a). A motivação é forte demais para que a crise o deixe prostrado por terra, ainda que se veja perseguido o tempo todo: “Sirvo de piada o dia todo e todo mundo caçoa de mim. Quando falo é aos gritos, clamando: ‘Violência, opressão!’ A palavra Javé ficou sendo para mim motivo de vergonha e gozação o dia todo. Eu me dizia: ‘Não pensarei mais nele, não falarei mais no seu nome’. Era como se houvesse no meu coração um fogo ardente, fechado em meus ossos. Estou cansado de suportar, não agüento mais!” O “fogo ardente” que incendeia seu coração faz lembrar o episódio dos discípulos de Emaús: “Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos falava pelo caminho e nos explicada as Escrituras?” (Lc 24, 32). Em ambos os casos, o toque do anjo ou a lembrança do Ressuscitado bastou para dar asas a seus pés.
3. Fonte de água viva
Com base nos itens acima – crise e encruzilhada - conclui-se que a Vida Religiosa sofre no corpo e na alma a ambiguidade desse binômio. Em meio a uma Igreja que, por vezes, parece utilizar as celebrações do cinquentenário do Concílio Ecumênico Vaticano II, não para avançar em suas propostas, mas para neutralizar sua força inovadora, a VR vê-se dilacerada por dúvidas e perguntas, incertezas e inquietudes. Se é verdade que o Vaticano II representou um sopro do espírito pelas janelas abertas da Igreja, sangue novo no organismo com sinais de esclerose, oxigênio primaveril numa instituição com risco de caminhar para o outono, também é certo que, ao completar 50 anos, muitos setores da Igreja pretendem ignorar a veemência profética de seus documentos.
Resulta que não poucas Congregações oscilam atualmente entre o berço e a fronteira. Nota-se, entretanto, que o pêndulo se desloca com maior força para a fronteira. Constata-se isso numa série de “re” que hoje entra na pauta de qualquer encontro sobre o VR: re-fundação, re-novação, re-estruturação, re-definição... O mesmo se pode dizer da expressão “fidelidade criativa”, tão frequente nos corredores, salas e casas de muitas Congregações. Para usar um ditado popular, grande parte dos religiosos e religiosas deixou de “lamentar o leite derramado”, levantou a cabeça, abriu os olhos, oxigenou o coração, passando a vislumbrar as alternativas possíveis em meio à crise/encruzilhada. Ou seja, encontram-se decididamente na segunda fase do binômio. Começam a ver com certa clareza que os caminhos se bifurcam e exigem novas opções. Mais ainda: vão se dando conta que, no fundo, centenas e milhares de iniciativas populares já apontam caminhos novos e diferentes. Alternativas, tais como, a economia solidária, os desafios do meio ambiente, a necessidade de novas relações, a fecundidade da vida inserida, a presença nos porões mas inóspitos da sociedade, o valor dos pequenos gestos, o entrelaçamento entre os desafios locais e a perspectiva das transformações globais...
Em se tratando da VR, uma tríplice fonte nutre e fortalece a passagem da crise à encruzilhada: o seguimento de Jesus Cristo, o carisma do fundador(a) e o clamor dos pobres e excluídos. Mas pode haver uma armadilha oculta nesse ato de voltar-se para o Evangelho, para a trajetória da Congregação e para a realidade que nos rodeia. A armadilha é fazer da fonte um museu ou um folclore e passar a viver das glórias do passado. Em momentos de crise, o saudosismo pode insinuar-se como ratoeira tentadora. Vale, a esse respeito, definir o que se entende por seguimento – de Jesus, do fundador(a), em vista do serviço aos pobres.
Seguir não é imitar, mas recriar. A própria espiritualidade da Imitação de Cristo (Tomaz Kempis), tão reeditada e divulgada, explícita ou implicitamente, reconhece essa necessidade de transpor os limites da simples repetição daquilo que fizeram os antepassados. Imitar pode ser a forma mais ingênua de trair, pois os desafios históricos se renovam dia-a-dia. É a via rápida e imediata de multiplicar gestos que, não raro, sofrem de um anacronismo notório e escandaloso. Recriar para os desafios atuais a Boa Nova do Evangelho e o carisma de uma Congregação torna-se uma via muito mais lenta, longa e laboriosa. Exige atenção permanente aos “sinais dos tempos”, leitura atualizada da realidade e respostas que envolvam os verdadeiros protagonistas da história, as camadas de baixa renda e excluídas, os pobres do Evangelho.
A crise ainda nos deixa perplexos e prostrados, sem dúvida, mas para muitas Congregações se abrem as janelas da encruzilhada. Que o diga, por exemplo, o lema De olhos fixos em Jesus da Conferência Nacional dos Religiosos do Brasil (CRB); o trabalho de re-visitar os fundadores e fundadoras das respectivas Congregações; e, por fim, mas não em último lugar, as novas experiências de inserção que revitalizam a “opção preferencial pelos pobres”. Que o diga, igualmente, a teimosia com que se põe em marcha o trem das CEBs; o aprofundamento da Teologia da Libertação, incorporando novos elementos teóricos; a insistência e resistência das Pastorais e Movimentos Sociais, não obstante a criminalização das organizações de base por parte de amplos setores da sociedade.